Foto: elaine borges
Morte no Avião
Trechos do poema do Carlos Drummond de Andrade
(do livro A Rosa do Povo - Ed.Record)
Acordo para a morte.
Barbeio-me, visto-me, calço-me.
É meu último dia:
um dia cortado de nenhum pressentimento.
Tudo funciona como sempre.
Saio para a rua.
Vou morrer.
(...)
Almoço. Para quê?
Almoço um peixe em outro e creme.
É meu último peixe em meu último garfo.
A boca distingue, escolhe, julga, absorve.
Passa música no doce, um arrepiode violino ou vento, não sei.
Não é a morte. É o sol.
Os bondes cheios. O trabalho.
Estou na cidade grande e sou um homem na engrenagem.
Tenho pressa.
Vou morrer.
(...)
Pela última vez miro a cidade.
Ainda posso decidir,
adiar a morte, não tomar esse carro.
Não seguir para.
Posso voltar, dizer: amigos,
esqueci um papel, não há viagem,
ir ao cassino, ler um livro.
(...)
A morte dispôs poltronas para o conforto da espera.
Aqui se encontram os que vão morrer e não sabem.
Jornais, café, chicletes, algodão para o ouvido,
pequenos serviços cercam de delicadeza
nossos corpos amarrados.
Vamos morrer, já não é apenas
meu fim particular e limitado,
somos vinte a ser destruídos,
morreremos vinte,
vinte nos espatifaremos, é agora.
(...)
E pairamos, frigidamente pairamos
sobre os negócios e os amores da região.
Ruas de brinquedo se desmancham, luzes se abafam;
apenas colchão de nuvens,
morros se dissolvem,
apenas
um tubo de frio roça meus ouvidos,
um tubo que se obtura:
e dentro da caixa
iluminada e tépida
vivemos em conforto e solidão e calma e nada.
(...)
Ó brancura, serenidade sob a violência
da morte sem aviso prévio,
cautelosa, não obstante irreprimível aproximação de um perigo atmosférico
golpe vibrado no ar, lâmina de vento
no pescoço, raio
choque estrondo fulguração
rolamos pulverizados
caio verticalmente e me transformo em notícia.
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O jornalista Eugenio Bucci publicou partes desse longo poema acima, do Carlos Drummond de Andrade, para comentar a queda do avião da Air France, no último domingo, no oceano Atlântico. Seu comentário está no Estadão do dia 4 de junho e dele extrai esses parágrafos:
Os versos de "Morte no avião" compareceram, ainda que em silêncio, ao noticiário da semana. Sempre é assim quando somos sobressaltados por um acidente aéreo de proporções tão graves como o do voo 447 da Air France. A gente quase não fala desses versos, talvez para não provocar mais dor sobre a dor já instalada, mas eles estão ali, presentes, doendo. O Airbus A330-200, que sumiu do mapa às 23h14 do domingo, quando sobrevoava o Atlântico, não pousou em Paris, como programado, mas nas páginas dos jornais. Cada uma das 228 pessoas a bordo "caiu verticalmente e se transformou em notícia". Exatamente como Drummond avisa.
A palavra "notícia" fecha o poema como se o cortasse bruscamente. Ela é chave para compreendermos como o jornalismo, nesses casos, nos ajuda a aplacar o sofrimento. No verso final, a palavra "notícia" subverte o que seria a ordem natural das coisas. A "notícia" ocupa o lugar de "cadáver" ou mesmo de "espírito": surge como o destino certo dos que encontram a morte no avião. Dificilmente eles poderão ter um funeral como outros mortos normais, pois seus corpos se perderam. Nessas circunstâncias tão "antinaturais", é pelas manchetes que eles são velados – e é assim, velando-os, que as notícias confortam os que ficam.
muito bonito e comovente!
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