segunda-feira, 6 de julho de 2009

JOYCE E OS VIVOS E OS MORTOS


Cartaz do filme Os Vivos e os Mortos (reprodução)

No domingo, ao final da Festa Literária Internacional de Parati ( que acompanhei via Internet) houve uma reunião informal com alguns escritores cujo tema era "Livros de Cabeceira". Cada escritor leu trechos de seus livros prediletos. E a escritora irlandesa Anne Enright (O Encontro, que não li) escolheu, pra meu grande prazer, os últimos trechos do conto Os Mortos, do James Joyce, do Dublinenses (publicado em 1914). Adorei, pois considero esse conto uma pequena obra prima da literatura universal. Há também o filme, Os Vivos e os Mortos, do John Huston, de 1987 (que ele, já muito doente, dirigiu em cadeira de rodas). A história é simples: o casal Gabriel e Gretta participam da festa do Dia dos Reis na casa das velhas tias, Julia e Kate. Eles cantam, dançam, se divertem. O baile na casa das tias é um grande acontecimento. Mas uma música cantada no final da festa faz Gretta lembrar Michael Furey, um grande amor da juventude. E são os sentimentos, as sensações que Joyce descreve magistralmente.

Abaixo transcrevo a parte final do conto, do livro Dublinenses, da Civilização Brasileira, traduzido por Hamilton Trevisan:


OS MORTOS


(...) Ele está morto - disse finalmente. - Morreu quando tinha apenas dezessete anos. Não é terrível morrer tão jovem?
- Que fazia ele? - perguntou Gabriel, ainda com sarcasmo.


(...) Gabriel sentiu-se humilhado pelo fracasso de sua ironia e pela evocação da figura do morto, um garoto da companhia de gás. Enquanto vibrava com íntimas recordações, repleto de ternura, alegria e desejo, ela o comparava com outro. Uma humilhante consciência de si mesmo o assaltou. Viu-se como uma figura ridícula, fazendo de menino travesso para as tias, um sentimentalista tímido e bem intencionado discursando para pessoas vulgares e idealizando seus cômicos desejos: o lamentável pretensioso que vira de relance no espelho. Instintivamente, voltou-se contra a luz, para a esposa não ver o rubor que se alastrava em seu rosto.
(...) - E por que morreu tão jovem, Gretta? Tuberculose, foi?
- Creio que morreu por minha causa.
(...) - Foi no inverno - disse ela - no princípio do inverno, quando estava para deixar a casa de minha avó e vir para o internato e estava doente na pensão em Galway e não o deixavam sair. Sua família, que morava em Oyghterard, tinha sido avisada. Dizem que definhava, ou algo parecido. Nunca soube ao certo.



(... )- Então, chegou o dia em que eu devia deixar Galway e vir para o internato. Ele havia piorado tanto que não me permitiram vê-lo. Por isso, escrevi-lhe uma carta dizendo que ia partir para Dublin e retornaria no verão, esperando encontrá-lo bem melhor.
Parou um instante para controlar a voz e prosseguiu:
- Na noite anterior à partida, estava em casa de minha avó em Nun's Island, arrumando as malas, quando ouvi uma pedra bater na vidraça. Os vidros estavam tão embaçados que não pude ver nada. Desci correndo as escadas, vestida como estava, e dei furtivamente a
volta pelos fundos da casa e lá estava o pobre rapaz, num canto do jardim, tiritando de frio.
- E não o mandou voltar para casa? - perguntou Gabriel.
- Implorei que o fizesse; disse que a chuva ia matá-lo. Respondeu que não queria viver. Lembro-me tão bem de seus olhos! Tão bem! Estava parado perto do muro onde havia uma árvore.
- E voltou para casa?
- Sim. Voltou. E quando fazia apenas uma semana que eu estava no internato, ele morreu e foi enterrado em Oughterar, onde viviam seus parentes. Oh, o dia em que soube que... que estava morto!
Calou-se, sufocada em soluços. Prostrada pela emoção atirou-se na cama com o rosto para baixo, soluçando. Hesitante, Gabriel continuou a segurar-lhe a mão e, então, com pudor de imiscuir-se em sua tristeza, deixou-a cair e caminhou sem ruído até a janela.

Gretta logo adormeceu.


Gabriel debruçou-se na cômoda e contemplou sem ressentimento os seus cabelos emaranhados, a boca entreaberta, ouvindo-lhe a profunda respiração. Então havia esse romance em sua vida: um homem morrera por ela. Quase já não o magoava pensar no pouco que ele, marido, representara em sua vida. Observava-a enquanto dormia, como se nunca houvessem vivido juntos. Seus olhos curiosos fitaram longamente o rosto e os cabelos, e ao pensar em como devia ser ela naquele tempo, no tempo da primeira juventude, uma estranha sincera piedade pela esposa invadiu-lhe a alma. Não ousava dizer, nem para si mesmo, que seu rosto já não era belo, embora soubesse que já não era o rosto pelo qual Michael Furey afrontara a morte.
Talvez não lhe tivesse contado toda a história. Seus olhos moveram-se para a cadeira sobre a qual ela atirara algumas roupas. Um cordel da anágua pendia no chão. Uma bota estava em pé, o cano dobrado para baixo; a outra tombada de lado. Pensou no tumulto que o agitara uma hora antes. De onde surgira aquilo? Da ceia, do tolo discurso, do vinho, da dança, da brincadeira quando se despediam no vestíbulo, do prazer de passear pelo cais sobre a neve? Pobre tia Júlia! Ela também logo seria uma sombra junto às sombras de Patrick Morkan e seu cavalo. Surpreendera esse lúgubre presságio em sua face, quando ela cantava. Muito em breve, talvez, estaria sentado no mesmo salão, vestido de preto, o chapéu de seda sobre os joelhos. Os reposteiros estariam cerrados e tia Kate, sentada a seu lado, chorando e assoando o nariz, contar-lhe-ia como tia Júlia morrera. Revolveria o cérebro à procura de palavras que pudessem consolá-la e só diria frases fúteis e vãs. Sim, isso logo iria acontecer.
O ar gélido do quarto fê-lo estremecer. Deslizou cautelosamente sob as cobertas e acomodou-se ao lado da esposa. Um por um, estavam todos se transformando em sombras. Seria melhor precipitar-se na morte no apogeu de uma paixão, do que extinguir e murchar lentamente com a velhice. Pensou como aquela mulher, adormecida a seu lado, ocultara por tantos anos a imagem do seu amado a afirmar-lhe que não queria viver.

Pranto generoso invadiu-lhe os olhos. Nunca se sentira assim por uma mulher, mas sabia que isto era amor. As lágrimas cresceram nos olhos e ele imaginou ver na penumbra do quarto um jovem parado sob uma árvore encharcada. Outras formas pairavam. Sua alma acercava-se da região habitada pela vasta legião dos mortos. Pressentia, mas não podia apreender suas existências vacilantes e incertas. Ele próprio dissolvia-se num mundo cinzento e incorpóreo. O mundo real, sólido, em que os mortos tinham vivido e edificado, desagregava-se.
Leves batidas fizeram-no voltar-se para a janela. A neve tornava a cair. Olhou sonolento os flocos prateados e negros, que despencavam obliquamente contra a luz do lampião. Era tempo de preparar a viagem para o oeste. Sim, os jornais estavam certos: a neve cobria toda a Irlanda. Caía em todas as partes da sombria planície central, nas montanhas sem árvores, tombando mansa sobre o Bog of Allen e, mais para o oeste, nas ondas escuras do cemitério abandonado onde jazia Michael Furey. Amontoava-se nas cruzes tortas e nas lápides, nas hastes do pequeno portão, nos espinhos estéreis. Sua alma desmaiava lentamente, enquanto ele ouvia a neve cair suave através do universo, cair brandamente - como se lhes descesse a hora final - sobre todos os vivos e todos os mortos.

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